Acredito que seja redundante rodear a respeito do quanto Dragon Ball Z é uma animação querida, reverenciada e principalmente cortejada pelo mundo todo. A obra, não satisfeita em ser um sucesso por si só, foi também a porta de entrada para muitos fãs mergulharem nesse vasto mundo dos animes e, para além disso, inundar de vez o ocidente com a sua influência.
Uma vez que imergimos neste universo mágico, não tem mais volta: somos arrebatados, deslumbrados, cruelmente encantados com aventuras épicas, batalhas alucinantes, a eterna troca de punhos do bem contra o mal, o pânico do combate, os brados de fúria, os canhões de luzes, o desespero pela vitória e o golpe final, o tiro de misericórdia quando levantávamos as nossas mãos para ajudar nosso herói, já sem forças, a subjugar o terrível vilão.
Aventura, amizade, coragem, riso, choro, comédia, tragédia, desamparo, esperança, orgulho, humildade, morte, vida, sobrevida, legado…enfim, eu diria que a palavra “emocionante” ainda é muito rasa para descrever esse belíssimo miasma, essa impiedosa sinfonia que Dragon Ball é capaz de nos proporcionar.
Só que Dragon Ball não é uma obra que nos é simplesmente contada. Ela é vivida, encenada, encarnada e eu diria até ETERNIZADA pelos seus personagens que -principalmente os Saiyajins- são de um carisma, de uma sensibilidade, de uma riqueza de desenvolvimento e acima de tudo de uma evolução invejáveis.
Assim como muitos dessas nossas queridas figuras foram eternizadas na nossa Versão Brasileira pelos timbres de mestres como o nosso amado Wendel Bezerra, Luiz Antônio Lobue, Vagner Fagundes, Marcelo Campos, entre outras lendas do nosso teatro de vozes, eu gostaria de destacar uma performance, em especial, que, para mim, é simplesmente irretocável e que, com todo o rigor da palavra, me comove até hoje pela humanidade que ela carrega: o papel de Vegeta desempenhado por Alfredo Rollo.
Talvez para alguns, num primeiro momento, pareça estranho enaltecer tanto assim um trabalho de dublagem. Muito provavelmente lhes ocorra o seguinte pensamento: “Ora, a única coisa que ele fez foi emprestar sua voz ao brutamontes do anime”, ou, quem sabe: “É apenas uma dublagem, ele fez uma coisa que já estava pronta”.
Temo que o que eu falar a seguir possa soar mais rude do que o esperado, mas, no momento em que eu utilizo o termo “performance” é justamente o momento onde eu tento escapar deste senso comum incolor, vago e ingênuo que se criou em volta da palavra dublagem e, mais especificamente, da profissão do dublador. Não falo de áudio, não falo de imagem, não falo de sincronia, de tradução, de microfones, de fones de ouvido, de bancadas, de estúdios, de loops, muito menos de “imitações” ou meros encaixes labiais. Falo de atores, de artistas, de vida, de espetáculo, de presença, de movimento, de jogo, de troca, de entrega e de seres humanos acima de tudo. Dançar, correr, pular, cair, caçar, matar, morrer, sentir uma vida, uma eternidade inteira nascer, ser condensada, lapidada, confiada, entregue à emoção da voz. É o respiro, é o berro, é o grito, é o brilho, é o estribilho, é a pausa…é toda essa valsa!
Dar vida a um corpo, dar forma a um ato: isso é atuar. Traduzir esta pulsação apenas pelos graves, agudos e médios de uma voz? Isso é ser ator duas vezes. Isso é ser um dublador.
Isso é dublar.
Assim como em nossos reverentes palcos de madeira, diante do nosso respeitável público, o pulso da vida corre pelo roteiro, pelas falas, por aquele pequeno mundo solitário do microfone, este que é a ponte entre a simples imagem muda do personagem e do ator que lhe dá a luz com a sua voz. Personagens são humanas. Ainda que por trás de outras máscaras, ou por baixo de outras criaturas como animais, monstros, espíritos, máquinas ou alienígenas, mas o que nos permite a identificação, o que permite com que uma personagem nos toque, nos fale, nos machuque, nos inspire e nos emocione são, justamente, as relações humanas, os conflitos humanos: o lado humano.
“Ora, mas onde está essa humanidade em Vegeta?! Estamos falando de um guerreiro orgulhoso, um assassino de sangue-frio, o anti-herói da obra!”
Pois é. Eu também costumava pensar desta forma nas primeiras vezes que assisti à obra, naquelas tardes ao final dos anos 2000. Vegeta num primeiro momento nos é vendido como uma figura suja, arrogante, desprezível, quase como se fosse uma contra-força, uma oposição direta, um pêndulo imediato do caráter altruísta do nosso herói Goku. Enquanto Goku é compassivo e indiferente, Vegeta se posta como frio, calculista e egoísta. Ele vê a fraqueza como a maior falha, não transigindo nem consigo mesmo.
Mas, com o passar das sagas, começamos a perceber que aquela figura também era capaz de experimentar outras sensações além de meros impulsos primais (raiva, êxtase, sede de sangue…etc). De maneira mais rápida do que esperamos, vemos Vegeta se render ao desespero, ao pânico, à dúvida, à incerteza, ao desamparo, à inveja, vemos ele abandonar seu sangue real, vemos ele pisar em seu título de Guerreiro de Alto Escalão para se reduzir à algo quase como uma criatura disforme, diametralmente oposta do que ele achava que era.
Quando percebi a violência dessa transição, a brutalidade com que essa chave se vira na consciência de Vegeta, foi quando comecei a me perguntar:
“Será?”
“Será que realmente existe alguma coisa ali dentro?”
“Será que tem uma alma debaixo daquela casca?”
Nascido na nobreza de uma raça guerreira, Vegeta tinha prestígio, realeza e orgulho correndo em suas veias desde a infância. Mas tudo isso é brutalmente arrancado dele quando é forçado a ser um subordinado de Freeza, assistindo em vão enquanto o senhor da guerra destrói seu planeta. Mas ele ainda persevera, na esperança de derrotar o Imperador do Universo e conseguir sua vingança. Os muitos anos de subserviência, de impotência e desdém foram o que moldaram aquela personalidade tóxica, inflexível e insolente de Vegeta, que de certa forma, é a imagem “padrão” que temos da personagem no nosso imaginário: um guerreiro cruel, orgulhoso, a quem nada importa.
Porém, quando paramos e apreciamos com atenção a linha evolutiva da obra, mais especificamente, as cristas e vales de Vegeta, chega a ser impressionante, e eu diria até traumatizante o quanto o seu orgulho -a força motriz que ao mesmo tempo que o alimenta, também o envenena- é, por vezes, brutalizado, aviltado até o ponto de Vegeta despencar do seu trono de príncipe até os rastejos mais miseráveis de um guerreiro humilhado. Foi um choque, foi seco, foi estridente, foi magno a tal nível que por vezes, durante o anime, tivemos vislumbres lancinantes desta máscara se quebrando. Vemos Vegeta se quebrar. Vemos a máscara cair.
Vemos ele chorar.
Apesar de, quando mais jovem, não conseguir dimensionar direito a profundidade do cuidado de caracterização do anime, algo que sempre me chamou atenção na transição das sagas (muito por conta da performance dos atores de voz) era como a atmosfera hostil aumentava exponencialmente. O terror que sentimos quando os Saiyajins chegam à terra e massacram os guerreiros é diferente do do assombro que nos acomete quando estamos à cinco minutos da explosão de Namekusei, que é diferente do pânico que somos imersos quando o planeta está na corda bamba do choque entre o Kamehameha Perfeito Kamehameha Pai-e-Filho, que é diferente do nosso desespero ao ver a agonia, a tortura, a sangria do Super Saiyajin 3 cambaleando, sem de onde tirar forças para se manter de pé contra o cruel Majin Buu.
Agora, quando assisti novamente o anime, pela quarta ou quinta vez, já mais velho, eu pude me permitir ainda mais ser arrebatado por essa aura de perigo, tensão, malícia, esse lado mais pesado que flertava com a ambientação leve e colorida da obra. Eu confesso a vocês que poucas vezes fui pego tão desprevenido, tão indefeso, sem salvaguarda quanto nesta vez em que reassisti, com mais atenção, a luta, a renúncia e a morte de Vegeta na Saga Freeza.
Primeiro que já é um choque muito grande para nós, espectadores ver o guerreiro que, há uma saga atrás parecia ser praticamente imbatível, sendo execrado como num abatedouro pelo então Imperador do Universo. Não só tivemos a real dimensão do poder de Freeza mas de igual modo tivemos prova de sua crueldade ao continuar violentando o orgulho já em frangalhos de Vegeta, mesmo depois de ter desistido de lutar e até mesmo de viver.
Talvez alguns não entendam o tamanho dessa derrota para o personagem de Vegeta e justamente quando eu consegui assimilar o tamanho da humilhação que nosso anti-herói foi submetido foi também o momento em que me dei conta de que me emocionava, me comovia, me compadecia, sentia pena ao ouvir os soluços de uma personagem que eu sequer imaginava ser capaz de derramar lágrimas.
Aquele era o tamanho da vergonha que trespassava Vegeta.
Essa que, para mim, é uma das cenas mais poéticas de Dragon Ball e possivelmente a cena onde temos um dos primeiros e maiores vislumbres da humanidade de Vegeta. Pela primeira vez na vida ele sentiu medo, pânico, pavor. Pela primeira vez na vida ele se sentiu minúsculo, indefeso, nu. Pela primeira vez na vida ele foi um humano. Sim! Um humano qualquer, igual a tantos outros que ele matou impiedosamente apenas pelo prazer de subjugar. Ele foi despido. Se tornou caça. Se tornou vítima.
O contraste teatral de timbres em cenas como essa no anime é simplesmente o espetáculo à parte. É excruciante, é incômodo, mas ao mesmo tempo viciante a antítese dos graves cínicos do mestre Carlos Campanille desdenhando dos soluços de humilhação de Alfredo Rollo. A tensão, o constrangimento, a sensação de desesperança da cena já é tão latente, mas a nossa Versão Brasileira faz questão de nos mergulhar ainda mais fundo nesse universo incrivelmente ameaçador, agressivo, provocador e intenso que é o espetáculo de Dragon Ball.
Eis que, quando tudo se sucede ao inevitável destino, quando finalmente vemos aquele feixe de luz vermelha atravessar o peito de Vegeta, a máscara se quebra por completo. Não há mais orgulho, não há mais realeza, não há mais guerreiro, não há mais ali sequer algo que possamos chamar de humano. Há uma criatura: uma criatura que tem força apenas para chorar as últimas lágrimas de corpo e ego ferido e implorar, desesperadamente confiar ao seu rival o objetivo que havia vivido para realizar: vingar sua raça. Vingar seu orgulho. Subjugar o Imperador.
Matar Freeza.
É a partir desse momento que percebemos que, além das sequelas do vexame, da humilhação, do orgulho ferido que Vegeta carregava, ele teve que assistir, em desgraça, Goku alcançar o objetivo que ele não alcançou. Vegeta uma vez diz a Goku que ele era o muro que jamais poderia ser derrubado, não importava o quanto se esforçasse. Só que o jogo vira. Daí para frente, Goku passa a ser o muro. Um muro que cresce, que cerca, que aprisiona, que sufoca e que por mais que force, motive e crie essa necessidade, ou melhor, essa ânsia de Vegeta em se ver livre, por mais que fomente essa ambição quase doentia em superá-lo, ele simplesmente não consegue.
É interessante como que no momento em que Goku e Vegeta param de ser o Yin e o Yang um do outro, quando esse pêndulo se arrebenta, quando essa rivalidade começa a diluir (afinal, Goku passa a enfrentar adversários mais fortes do que o próprio Vegeta) é o momento onde Vegeta perde completamente o rumo.
Sem direção ou motivo, ele vai para a Terra e treina incansavelmente para superar Goku e ganhar de volta seu orgulho ferido. Mas, lenta e continuamente, ele se perde nos tempos de paz. Ele tem até uma esposa e um filho com quem ele passa a criar seus primeiros laços, mas um dia percebe, de repente, o quanto isso é nocivo para ele. Ele não se reconhece mais.
O orgulho de ser o príncipe Saiyajin estava lentamente desaparecendo de sua memória. Isso o enfurece ao ponto de ele perder completamente sua racionalidade e tentar uma última investida para superar seu rival de uma vez por todas, cometendo o pecado de trocar sua alma pelo poder supremo.
É incrível notar a visceralidade desse vínculo de Vegeta para com Goku porque, ao mesmo tempo que essa rivalidade é nociva para o orgulho dele, é Goku quem motiva Vegeta a se tornar cada vez mais forte, a aprender e reaprender o conceito de ser um guerreiro, a libertá-lo daquele tirano que ele um dia foi, a experimentar o carinho de uma família, e, mais importante, a querer bem e ser querido, a ter algo pelo o que lutar além de si mesmo, além do prazer da caça: um propósito que se traduz poético em sua última frase antes de seu sacrifício contra Majin Buu:
“Adeus Bulma, Trunks e você também, Kakaroto…”
Isso é o que faz o elo entre o nosso protagonista e nosso deuteragonista ultrapassar apenas a consanguinidade Saiyajin. Vegeta é grato à Goku. Apesar de não ter conseguido derrotá-lo em batalha como forma de validar a si mesmo, é com Goku que ele aprende que no fundo, isso não importa nada. Goku nunca lutou por ódio, por vingança, por orgulho ou pelo puro “cheiro de sangue”. Não. Goku luta para superar seus limites, proteger seus entes queridos e aprender com seus adversários. É isso o que torna a relação dos dois tão mágica, é isso que torna o laço entre o timbre terno de Wendel Bezerra e a visceralidade de Alfredo Rollo ser tão sincero. Esse é o encanto da nossa Versão Brasileira: nossos artistas se eternizam em suas personagens e as personagens se eternizam neles!
É Sinergia. Sintonia. Sinfonia. Simbiose.
Digo, sem medo de quaisquer equívocos, que Vegeta se tornou para mim a personagem mais humana da obra por conta do incrível trabalho de ARTE da voz que lhe deu vida. Não somente pela história do anime, que todos nós sabemos de cor, mas sim pela forma com o que ela é contada nas vozes de nossos artistas. Não é algo traduzido apenas para a nossa língua, para a nossa fala, mas sim para a nossa vida: Vegeta pode não ser um campeão, mas é um guerreiro. Alguém que se machuca, que tropeça, que cambaleia, que se contorce. Alguém que chora sangue e sangra lágrimas. Um alienígena, sim, mas um alienígena que encarna a humanidade tão puramente quanto nós mesmos! Que sente dor, agonia, humilhação, alegria, orgulho, culpa – na minha cabeça já começam a surgir frases distintas de Alfredo Rollo para cada emoção que mencionei aqui.
Apesar de toda a sua força, apesar de estar situado em um mundo de escala de poder fora do normal, Vegeta é real. Ele se faz real.
Ele é um personagem imperfeito e sem remorso que tinha tanto orgulho quanto aversão a si mesmo, junto com uma necessidade constante de se avaliar e se validar contra as pessoas ao seu redor. Alguém que toma decisões erradas na vida e continua sofrendo uma derrota esmagadora após a outra. Alguém que não precisa de simpatia, mas da força de vontade para perseverar contra todas as probabilidades. Alguém que percebe que a vida não é o que se imagina e, ainda assim, encontra pérolas de felicidade escondidas no caminho que ele escolheu. E é exatamente por isso que Vegeta é tão identificável. Nem todo ser humano nasce vencedor. Nem todo mundo vai ser o Goku em suas vidas! A maioria de nós passa por derrotas em vários estágios de nossa caminhada. Mesmo assim, vivemos a dor, agonia e humilhação para nos levantarmos novamente.
Vegeta é provavelmente um dos melhores personagens de todos os animes. É uma peça. É um manto. É uma performance. Um trabalho sagrado, mais que dublado, encarnado, interpretado, vivido e eternizado pela voz de um ARTISTA: Alfredo Rollo.
Celebre a arte, prestigie a boa dublagem, valorize nossos artistas e (quando essa loucura toda finalmente passar) vá ao teatro!
Evoé!